sexta-feira, 15 de maio de 2015

Querido Artaud, boa noite

O quão frio é o inferno?
O que te arde a cabeça por aí? Te queima os ossos, te enruga os pêlos, te doi quando você fala?
O inferno do meu lado é nublado que nem um sorriso sem céu de boca. Não sei Artaud, somos tantos, e as vezes, preferiria nao ter que ser muitos. Já tentei, e você viu. Tentei ser comum, daquelas que tem trabalho em loja da sapato, que volta para casa e come o que der, sai para beber cerveja, e vai à praia, e compra roupa, e coloca maquiagem, e vai para um sertanejo, e escova cabelo,  e faz tudo de novo, e de novo, e de novo come pão com ovo. Gosto de malzbier, Artaud, e penso que isso é um problema.

Me vejo tão pouco em coisas que gostaria de me jogar, me vejo mais nas beiradas dos abismos, comento pelos cantos, sem deixar transbordar.  Quando vejo alguém fazendo algo que me ganha os olhos do peito, a boca da barriga explode em gozo e vou para casa com isso. E só. Será que me falta cunhões?

Deixei o teatro de lado tem tempo, Artaud. Não tentei muito ficar dentro de seu espaço e quando tentei juro que foi de verdade, me empenhei muito, corri muito, fui atrás, na frente, o cerquei como emboscada. Mas, não deu. As vezes penso que ele não quis me dar. Me tirou tanta coisa. Me deu seu drama, me pôs em lágrimas tantas vezes, me deu centavos, colegas de trabalho, mas que trabalho hein? Que me aborrecia cada apresentação. Eu gostava de estar em sua presença Artaud, só que não tantas vezes. Me enchia o saco. Eu só ouvia os outros "Ah, o teatro! Amo ensaiar! Amo apresentar!" só faltavam tatuar no braço: "Teatro, o amor da minha vida, como te quero meu bem mais precioso de todos os tempos dos tempos que já existiu". Preguiça. Odiava me apresentar aos sábados e domingos  por um mês, dois meses, ou seja lá quanto tempo. Levanta, fala, abaixa, pega, risca, um, dois, três para trás, olha com raiva, volta, grita. Uma das coisas que mais amei em fazer no meu tempo de glória teatral foi aos meus 13 anos. Fui uma árvore em Chapeuzinho Vermelho. Foi lindo, ali o teatro me fisgou e me colocou em um aquario. Glu glu. Mas me cansou tão rápido.

Cresci a menina extravagante das pulseiras e cabelos coloridos. Não me deram muitas chances, Artaud. Não pude escolher o que fazer, aceitava qualquer moeda de troca, queria to do, tentar, encontrar outros caminhos de rato. Me olhavam com a ponta da lingua "menos, menina", eu olhava Kika e dizia: "é isso, por que não?". E a resposta era: Porque não. Ataud, eu não sou menos. Minha natureza não é de coelho, não critico quem seja, não critico se se é "versátil" ou coisas do tipo, não é que eu não seja, ou não saiba ser, é que me calo na dor de me perceber só em minhas ideias, cansa Artaud, brincar só. Deixei o teatro para lá, e vira e mexe ele volta e me atormenta, fui para tantos outros lugares na tentativa de ocupar um espaço de terra abandonada, pensando em cultivar, mas me incomoda algo entre os dedos dos pés. É o teatro, Artaud. É minha covardia. Há tanto de histeria em minha historia que se mexer fede, e você sabe, não me dou para filmes, Artaud. Me querem menos. E eu cresci, Artaud, extra vagante.

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